Translate

segunda-feira, 9 de maio de 2016

Cientista Médico Reprodução Humana - Dr. Elsimar Coutinho

Dr. Elsimar Coutinho

A Melhor Coisa da Vida

Grande viajante, tendo rodado pelo mundo afora nas minhas andanças de pesquisador e conferencista itinerante, dando inúmeras voltas ao mundo e visitando paragens remotas do planeta, fui surpreendido outro dia por uma ouvinte de um relato que fiz de uma viagem à Caxemira, ao perguntar-me se eu não achava que viajar era a melhor coisa da vida. Entusiasmado com o meu próprio discurso, quase lhe respondi que sim, claro que sim. Porém, a imagem de um cliente cujo problema me fora apresentado naquela tarde surgiu no meu subconsciente obrigando-me a refletir antes de responder. Bonito, rico e bem educado, o meu jovem paciente tornou-se impotente e, ao procurar-me em busca de tratamento, encerrou a descrição da sua saga afirmando categoricamente que havia perdido a melhor coisa da vida.
Achei que a pergunta da minha interlocutora merecia uma resposta mais elaborada e, à medida que me preparava para respondê-la, fui me dando conta que poderia apresentar-lhe uma lista tão grande de “coisas melhores na vida”, que viajar certamente não estaria entre as primeiras. Para que viajar se tornasse “a melhor coisa da vida”, se fazia necessário satisfazer a pré-requisitos que seriam considerados para quem não os possuísse a melhor coisa da vida.
A melhor coisa da vida para quem não ouve, por exemplo, seria ouvir. Para quem não enxerga, ver. Para um paraplégico, andar, e para o mudo, falar. Para simplificar, poderíamos afirmar que ter saúde é a melhor coisa da vida e somente aqueles que atendessem ao pré-requisito de ter saúde para viajar é que poderia fazê-lo. Mas para viajar não basta ter saúde. É preciso ter dinheiro, ter tempo, ter uma guia, boa companhia, possuir um grau razoável de instrução, poder se comunicar com os habitantes dos países visitados, quem sabe falar várias línguas, conhecer a história.
Para o vaqueiro Luís, analfabeto com oito filhos, que nasceu e viveu na minha fazenda em Mata de São João, a melhor coisa da vida, afirmou-me, “é saber ler”. Para a mulher que tem um problema de infertilidade, e até para a que não a tem, certamente a melhor coisa da vida é ter um filho. Para aquela que já teve alguns filhos e deseja ter as trompas ligadas, é possível que sua opinião tenha mudado e se exprima com convicção que a melhor coisa da vida é ter as trompas ligadas. Há quem ache que a melhor coisa da vida é dançar. Para as que assim se manifestam, a preferência pode ser um foxtrote, cheek to cheek ou uma valsa antiga ao som dos violinos.
Há quem prefira ler, mas para o gourmet certamente não existe nada melhor do que comer.
Já ouvi, ao longo da vida, opiniões muito variadas, entre as quais se incluem: um amigo na praça, um padrinho rico, um bom marido, um bom provedor, um bom protetor, uma mãe zelosa, uma amante carinhosa. Ser talentoso, ser esperto, ser forte, ser inteligente, ser bonito, ser criativo, ser grande ou ser pequeno são freqüentes opções dos mais jovens. Ter uma grande família, ser longevo, ter uma irmã, ter mãe viva, um amigo leal, muitos amigos são opções de pessoas mais experientes.
Os religiosos respondem rápido que a melhor coisa da vida é ter fé, enxergar a luz, ter proteção divina, crer em Deus. Alguns admitem que entre as melhores coisas da vida estão aquelas que o diabo gosta. O bon vivant cita um bom charuto, um bom vinho, viver bem, dormir, acordar cedo ou tarde, uma boa massagem, um bom banho ou um cafuné. Não menstruar tornou-se a preferência de centenas de minhas pacientes que se livraram de uma dolorosa e sofrida sangria mensal. Ter saúde, viver em paz, competir e vencer são opções oferecidas após longa meditação. Sexuar foi a opção predominante masculina. Amar e/ou ser amado são escolhas favoritas das mulheres e dos poetas.
Drummond achava que amar era tão bom que valia a pena até quando o amor não era correspondido. Vinicius de Moraes lhe fazia coro afirmando que quem não amou não viveu. Luís Buñuel discorda. Prefere o refúgio de um bar, onde cria e medita. Para o cineasta espanhol a vida seria inconcebível sem um bar.
Ser magro, gordo, (os gordos são alegres), baixo (cabe em qualquer lugar), ser alto (enxerga longe), ágil (chega na frente), ser negro (black is beautiful), ser branco, ser mulato (a mulata é a tal), cantar, saber tocar um instrumento, compor, pesquisar, ser médico, ser político, ser aplaudido, ser querido, ser popular, ter prestígio, ser respeitado, ter uma boa educação, falar várias línguas, ser potente, ter orgasmo, ter muitos parentes, não ter parentes, não ter vizinhos, Carnaval, pular atrás do trio elétrico, um chope bem gelado, pescar, caçar, uma boa soneca depois do almoço, um copo d’ água foram contribuições espontâneas e entusiasmadas de pessoas que questionei antes de escrever este texto. Ser honesto, ser corajoso, destemido, andar armado, ter um pistolão, ser solidário, ser generoso, ter sorte foram alternativas que refletiam a personalidade do consultado.
Espirrar, urinar, fazer tum-tum, eructar (arrotar), eliminar gases intestinais, silenciosamente ou estrepitosamente, foram sugestões pouco respeitosas de quem associa as coisas boas da vida com as sensações corpóreas. Ter sucesso, nadar, cavalgar, dirigir, pilotar um carro de Fórmula 1, um avião, andar de bicicleta, de moto, sonhar. Um bom vento de popa, a correnteza a seu favor, um rio piscoso, uma moqueca de garoupa, uma boa feijoada, uma rede, um peito de mulher, uma bunda redonda, um belo par de coxas, perna grossa, música clássica, uma boa gafieira, um jogo de cartas, o chá das cinco, ser pontual, falar a verdade, ser generoso (porque é dando que se recebe), é a chuva, é o sol, é a praia, é o mar, é surfar no Hawai, é namorar, é noivar, é casar, é casar e separar logo, é uma boa herança, uma boa genética, ter tempo, o ar condicionado, o calor, a mulher, ser nobre, a limpeza, a ciência, a cultura, a auto-estima, um belo traseiro, fazer o que gosta, o meio termo (modus in rebus), ser reconhecido, ser grato, ser respeitoso, ser tolerante, temente a Deus.
Estar de bem consigo mesmo (-être bien dans sa peau) e ser feliz pareceram-me os mais abrangentes.
Porém, mesmo essas alternativas, como as outras citadas anteriormente, exigem condicionamentos, porque até para ser feliz é preciso que aqueles que você ama também estejam de bem com a vida. Ninguém é feliz no meio de infelizes.
Depois de rever a enorme lista de alternativas, constatei que aquilo que eu sempre considerei o bem maior não constava na lista, apesar de ser a única razão pela qual os homens e mulheres são capazes de sacrificar a própria vida para não perder. O que seria então, aos meus olhos, a melhor coisa da vida?
Tendo nascido em um país cuja história está marcada pela escravidão e tendo vivido a maior parte da minha vida no século XX, aquele no qual floresceram sistemas políticos escravizantes e mutiladores da natureza humana, como o fascismo, o nazismo e o comunismo, desenvolvi contra os referidos sistemas de governos verdadeiro horror. A desumanidade dos seus líderes que perseguiam, encarceravam, torturavam e matavam todos aqueles que ousassem discordar das suas doutrinas totalitárias e antinaturais, alertaram-me desde cedo para a importância transcendental da liberdade para o pleno usufruto da vida e de tudo de bom que ela possa oferecer.
Constatei mais tarde que não eram apenas os tiranos políticos que podiam nos roubar a liberdade. Um mau pai, um padrasto cruel, um marido ciumento ou um patrão castrador podiam transformar a vida de um dependente ou subordinado em um martírio. Por todas essas razões, concluí que não poderia considerar nenhuma das coisas que me foram apresentadas como sendo “a melhor coisa da vida” sem o pressuposto de que fosse gozada em liberdade. Fiquei, portanto, com a liberdade.
A liberdade de ir e vir, de falar, de mudar de opinião, de ler, ouvir, olhar e ver aquilo que desejar. A liberdade de amar, de odiar a injustiça e a tirania, a liberdade de optar, de criticar, de voltar, de conversar, andar, correr e saltar. Assim, sem nenhuma dúvida, a minha escolha para a melhor coisa da vida é mesmo a liberdade de ser e fazer as outras “melhores coisas da vida”.
Jornal A TARDE – Coluna Opinião

Nenhum comentário:

Postar um comentário